O Retorno do Mito
por Boris Nad
S processos contraditórios de desmitologização e remitologização não são desconhecidos para as civilizações antigas, nas quais os velhos mitos são às vezes destruídos (desmitologização) e substituídos com novos mitos (remitologização). Em outras palavras, aqui os processos de desmitologização e remitologização são processos mutuamente causados e interdependentes. Eles não colocam em questão a própria base da comunidade mítica tradicional; ademais, eles a mantém atual e viva.
O mito, nomeadamente - exceto em casos especiais de degradação extrema e secularização da tradição e cultura - para nós, não é uma ficção de povos primitivos, uma superstição ou uma incompreensão, mas uma expressão assaz concisa das verdades e princípios sagrados mais elevados, que são "traduzidos" a uma linguagem específica da realidade terrena, na medida em que seja praticamente possível. O mito é verdade sacral descrita por linguagem popular. Onde as presunções para sua compreensão estão desaparecendo, o conteúdo mítico deve ser descartado para que se coloque em seu lugar um novo.
As Intuições Perigosas
O mito é, nas culturas tradicionais, também uma grande antítese, onde, como demonstrado na obra capital de J.J. Bachofen Direito Materno: Uma Investigação sobre o Caráter Religioso e Jurídico do Matriarcado no Mundo Antigo, os dois princípios maiores e irreconciliáveis são confrontados: o urânico e o ctônico, patriarcal e matriarcal, e isso é projetado para todas as modalidades secundárias do estado e da ordem social através das artes e da cultura.
Com o advento do indo-europeu, invasores patriarcais no solo da velha Europa matriarcal começou o conflito dos dois princípios opostos que é trabalhado no estudo de Bachofen. No caso em questão, os velhos cultos e mitos matriarcais se tornam patriarcais, através dos processos paralelos e alternados de desmitologização e remitologização, e traços desse conflito também são encontrados em alguns temas míticos, que podem ser compreendidos como uma história político-religiosa bastante breve, como Robert Graves os interpretou, em seu livro Os Mitos Gregos.
Em contraste, na Grécia, um processo de desmitologização que alcança seu ápice após Xenófanes (565-470) é completo e radical. Isso não é seguido por qualquer processo de remitologização, é uma consequência de um processo total de dessacralização e profanação da cultura, que resulta na extinção do mítico e no despertar de uma consciência história, quando o homem deixa de ser ver como mítico e começa a se compreender como um ser histórico. Este é um fenômeno que possui analogias com dois momentos na história: primeiro, com um processo de desmitologização causado pelo Cristianismo primitivo. Para os primeiros teólogos cristãos, o mito era o oposto do Evangelho, e Jesus era uma figura histórica, cuja historicidade os Pais da Igreja provavam e defendiam para os descrentes. Como contraste há o processo de remitologização da Idade Média, com toda uma série de exemplos de revitalização do antigo conteúdo mítico, muitas vezes conflituoso e irreconciliável, dos mitos do Graal e de Frederico II aos mitos escatológicos na época das Cruzadas e vários mitos milenaristas. É, sem dúvida, uma reatualização bastante antiga de conteúdo mítico e sua "intuição perigosa", que ultrapassa suas causas e serve como uma evidência da presença de forças míticas do mundo histórico, que processo algum de desmitologização é capaz de destruir ou extinguir.
A Mitologia do Consumidor - O Pesadelo da História
Outro exemplo de processo radical de desmitologização é a desmitologização que começa com a época do Iluminismo até seu ápice experimentado no "universo tecnológico". Ela é (como acima) expressão direta de degradação e declínio do homem moderno, que não mais é um ser mítico ou histórico, mas um mero "consumidor" dentro da "civilização consumista e tecnocrática" ou simplesmente um plugue para o universo tecnológico. O impulso heróico do homem como ser mítico e histórico foi esgotado. Forças destrutivas de desmitologização constantemente limpam e removem os ingredientes míticos da área da civilização consumista e da memória humana em geral, exterminando as "intuições perigosas" que estão contidas aí. Dentro do universo tecnológico, que é apenas uma fase final da queda do homem (moderno), o horizonte humano está finalmente se fechando, porque aqui o homem possui apenas um poder e apenas uma liberdade: o poder de gastar e a liberdade de comprar e vender. Essa liberdade e esse poder, testemunham sobre a morte do homem (conhecida pelo mito e pela história), porque dentro do universo da tecnologia e da civilização consumerista, qualquer coisa que transcende esse "animal de consumo" simplesmente não pode existir. "A Morte da Arte" sobre a qual fala a vanguarda histórica é uma simples consequência da morte do homem, primeiro como ser mítico, e finalmente como ser histórico.
É claro, o processo de desmitologização jamais pode se completar, pela simples razão de que a destruição não toca as próprias forças míticas. Elas continuam a aparecer e retornar através da história, seja sob roupagem "histórica", ou como algo que se opõe à história. Isso também é verdadeiro para o universo unidimensional de uma utopia tecnocrática. Como resultado, os verdadeiros conteúdos míticos da civilização de consumo são substituídos pelo simulacro mítico: ideologias e mitos subculturais, ou mitologia consumerista, crescendo sem controle, cujos heróis são figuras como o Super-Homem.
Mas a exaustão de longos e destrutivos processos de desmitologização não significa um retorno ao tempo mítico.
"Nós estamos na meia-noite da história, o ponteiro marcou as doze e nós olhamos adiante para as trevas onde vemos os contornos de coisas futuras. A essa visão se seguem medo e pesada premonição. Coisas que vemos ou pensamos que podemos ver ainda não tem nome, elas são inomináveis. Se as abordamos, não as afetamos com precisão e elas escapam do laço de nosso domínio. Quando falamos paz pode ser guerra. Planos de felicidade se tornam homicidas, não raro ao longo da noite".
Em resumo: "Incursões ríspidas, que em muitos lugares convertem paisagens históricas em elementais, ocultam mudanças sutis porém do tipo mais agressivo" (Ernst Jünger: No Muro do Tempo).
Na Aurora da História
O escrito No Muro do Tempo pelo autor alemão Ernst Jünger retrata a transição do mito em história, o momento em que a consciência mítica foi substituída pela histórica. A história, é claro, não existe há tanto tempo quanto o homem: a consciência histórica rejeita como ahistóricos os vastos espaços e épocas ("pré-história"), e povos, civilizações e nações, porque "uma pessoa, um evento deve ter características muito específicas que as tornem históricas". A chave para essa transição, segundo esse autor, fornece a obra de Heródoto, através da qual o homem "passa por um país iluminado pelos raios da aurora".
"Antes dele (Heródoto) havia algo mais, a noite mítica. Aquela noite, porém, não era trevas. Era como um sonho, e ela conhecia um meio diferente de conectar pessoas e eventos de consciência histórica e suas forças seletivas. Isso lança os raios da aurora sobre a obra de Heródoto. Ele se situa no topo da montanha que separa o dia da noite: não apenas as duas épocas, mas também dois tipos de épocas, os dois tipos de luz".
Em outras palavras, é o momento da transição de um modo de existência para algo bastante diferente, que chamamos história. Este é o tempo da transição de dois ciclos, que não podemos identificar com a mudança de épocas históricas - o problema em questão é a mudança profunda na existência do homem. O sagrado na maneira das épocas anteriores recua, cultos antigos desaparecem e em seu lugar vem religiões, que logo após, por si mesmas se tornam históricas ou anti-históricas, mesmo quando iniciam eventos e enredos históricos. As guerras cruzadas, convocadas pela Igreja do Ocidente, aprofundaram divisões e cismas e eventualmente deram origem à Reforma, que começou com entusiasmo religioso e um desejo de retorno "aos primórdios bíblicos", e então findou com o movimento histórico que abre o caminho para o desenvolvimento desimpedido da indústria e da tecnologia - incontida pelas normas da tradição (cristã), e livre de esperanças e desejos humanos.
A Careta de Horror
O Mundo da História, cujos contornos já encontramos em Homero, os quais foram moldados por Tucídides, e que experimentou seu zênite em algum momento ao fim do século XIX e início do século XX, com fronteiras incertas no tempo e no espaço, mas com uma consciência clara de suas leis e regulamentos, começou a entrar em colapso; e o vasto edifício da história se torna instável, como um sinal de penetração de forças estranhas até então desconhecidas. Essas forças possuem caráter titânico, elemental, visto pela primeira vez em desastres técnicos, que afetaram centenas de milhares de vítimas e então, nos eventos cataclísmicos do século XX, nas guerras e revoluções mundiais, com milhões de mortos e aleijados. A liberação da energia nuclear, da radiação e da destruição ambiental às quais áreas enormes foram expostas, a taxa diária paga em sangue, seja sacrificado ao "progresso" em tempos de paz, seja como consequência direta de intervenções e conflitos militares, são algo que emerge da moldura estabelecida pelo mundo histórico. É claro, a história não acaba aí, como esperado, por Marx ou Fukuyama. O que é mais notável é a aceleração do tempo histórico, que concentra eventos e reduz a distância entre os pontos de virada da história. Aquilo de que estamos falando é, porém, que aqui não estão apenas operando forças que chamamos históricas, e que o papel do homem nesses eventos fundamentalmente se modificou: ele não é mais capaz de operar igualmente com os deuses, ou segui-los, resistir contra eles ou mesmo subjugá-los, como era representado pelo mito. Ele (o homem) não é mais um participante ativo na história, guiado pelas paixões ou sua própria vontade, como ocorre na época histórica madura. Ele se torna o joguete de algo desconhecido, envolvido em eventos que o ultrapassam, contra sua vontade e fora de suas idéias.
A expressão de confiança alegre está sendo gradativamente substituída por uma careta de horror. O homem, que até ontem se considerava um soberano e mestre, reconhece sua fraqueza. Os meios que eram confiados são demonstrados como fracos ou na hora de decisão se voltam contra seu criador. Sistemas tecnológicos e ordens sociais possuem seus outros lados, seus esquemas automáticos, que não restringem mas encorajam a destruição, que situam o homem na posição de aprendiz de feiticeiro, que liberou forças incontroláveis. Corrupção, crime, violência e terror são mais resultados do que causas. Respostas políticas, independentemente de cor e signo, não oferecem soluções senão ampliam a desintegração. Se ele não se encontrasse em tempo de pânico, o homem poderia adquirir pelo menos uma consciência de seu próprio declínio.
Tudo isso era impensável na era madura da história porque então, o homem ainda era governado por si mesmo, e assim era a história, e portanto a história não podia ter senso de direção além daquela dada pelo próprio homem, seus próprios feitos e pensamentos.
Cada conceito de "sentido da história" é o conceito dos primórdios do homem, enquanto no tempo histórico clássico o homem não é criado, mas ele existe. A questão do "sentido da história" era uma questão sem sentido, e ela de fato não é encontrada nos escritores clássicos, de Heródoto em diante. A questão do "sentido da história", que é sempre encontrado fora do homem, se torna possível apenas quando a história e o foco saem do homem, seja na esfera social, seja na esfera das relações tecnológicas.
O homem moderno está atrasado demais para revelar sua própria fraqueza, mas sua desintegração não acusa o mito ou a história, senão precisamente a fraqueza e covardia do homem moderno. O mundo dos "valores civilizados", o mundo histórico em geral, que ele próprio havia criado, está se mostrando mais fraco do que costumávamos crer - estruturalmente fraco, espiritualmente e eticamente também. Ao primeiro sinal de alarme, ele começa a desintegrar, expondo, na verdade, a prontidão interna do homem moderno de capitular.
Essa é uma "meia-noite da história", que logo será substituída por algo diferente, e este momento é marcado pela difusão de forças titânicas, demandando o sacrifício de sangue.
Rumo à Pós-História: O Despertar do Mito
A história, nós devemos repetir novamente, não dura tanto quanto o homem na Terra. Mas a consciência sobre isso ocorre tardiamente na história, talvez apenas em seu fim, quando as fronteiras do tempo e do espaço estão mudando: por um lado, pela descoberta do passado distante do homem, com civilizações perdidas, então o passado do planeta e do universo, e por outro lado, com a exploração de espaços cósmicos, profundezas de oceanos, ou o interior da própria Terra, através das camadas arqueológicas e geológicas, quase ao modo de Verne. Novas perspectivas causam vertigem. A pré-história e a pós-história ganham em importância apenas quando a história se torna um edifício em ruínas. Mas passar o homem da história para algo que ele ainda não foi capaz de determinar ainda ou perceber claramente rememora agora o voo.
De uma maneira ou de outra, o universo tecnológico e a civilização do consumo chegarão ao fim, da mesma maneira que a época histórica clássica acaba com a tecnocracia e com uma ordem totalitária em sua forma completa, que não emerge nem da coragem ou da força, mas da covardia, fraqueza e medo. É impossível dizer quanto tempo isso vai durar. É irrelevante se isso vai acontecer devido a atrito interno, uma sobretensão ou um desastre, ou tudo isso junto. Mas em cada um desses casos, o colapso é apenas uma consequência da inabilidade do homem de continuar habitando no mundo histórico e governá-lo como ser supremo e soberano.
O retorno do mito, porém, não é possível em termos de um retorno à "pré-história". Forças mitológicas permanecem presentes, como eram durante todo o período histórico, mas elas não podem estabelecer um estado prévio porque carecem das pré-condições, em primeiro lugar, um "substrato" ausente, um terreno fértil. O homem moderno é fraco demais para isso, no sentido espiritual, psicológico e mesmo "fisiológico".
Junto com a história, a cultura gradativamente desaparece também, em seu sentido atual, que é basicamente apenas um instrumento de engenharia social. Em uma utopia tecnocrática (em oposição à cultura no período histórico) a cultura de massa é apenas uma das maneiras de canalizar a energia e impulsionar fantasias utópicas e desejos das massas; a cultura de elite, que constantemente vaga entre conformismo e negação, entre ceticismo e negação, entre ceticismo e ironia, e de volta ao conformismo, essencialmente permanece uma ferramente de desmitologia (ou desconstrução de mitologia) e destruição de instituições perigosas contidas no mito, que permite mais ou menos uma integração fluida no universo tecnológico, com a ilusão do livre arbítrio. O aparecimento e o despertar de intuições perigosas e arquétipos adormecidos, nas margens do mecanismo social tecnocrático, cria uma situação de conflito e leva a atrasos em seu funcionamento.
Na região fora da utopia tecnocrática, a cultura precisará assumir um papel mais tradicional do que aquele que possui na civilização do consumo. A desintegração do mundo histórico em seu estágio tardio, que nós estamos testemunhando, nos permite ver algo disso.
Por boa parte do período histórico, a cultura é uma área privilegiada de poderes sagrados e míticos. Essa é uma das maneiras nas quais forças míticas penetram de novo no mundo historicamente, se realizando na história, diferentemente do universo tecnológico, onde elas usualmente se manifestam através de elementos não-controlados de subculturas folclóricas, e muitas vezes distorcidos ao ponto de serem irreconhecíveis como simulacro do mítico, e não como sua expressão crível.
Eles mais testemunham sobre a necessidade eterna e insaciável do homem por conteúdo mítico, do que representam um signo de sua presença real.
A cultura na era pós-tecnocrática estará relacionada bem de perto ao restabelecimento da mitologia, em termos de reconhecimento e despertar do conteúdo mítico autêntico, marcado por inovação e revitalização da forma antiga e tradicional, mais do que, como até então, seu exorcismo. O sentido e propósito do processo de desmitologia, por contraste, deve ser limitado ao que possuía nas sociedades tradicionais: a limpeza de formas míticas "folclóricas" degeneradas, de modo a abrir espaço para aquelas que representa com credibilidade a tradição.
Boris Nad
Traduzido por Raphael Machado
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